terça-feira, 26 de agosto de 2008

A menina que sofria do “mal de mãe”

Livro: As duas Mães de Mila, de Clara Vidal
Tradução de Paulo Schiller. Edições SM, 2006, 78 págs., R$ 23.00

O livro acompanha a personagem Mila, dos 9 aos 15 anos, numa espécie de descida aos infernos. Incompreendida e solitária, privada do amor da mãe, a garota vai desenvolvendo – ao longo da infância e da puberdade – uma série de problemas psicológicos e sociais, a ponto de se sentir louca e precisar de auxílio psicoterápico.
Contada da perspectiva de Mila, por um narrador francamente solidário ao seu ponto de vista, a história se inicia com uma percepção dissociada da figura materna que, aos olhos da menina, parece ser duas: a mãe rosa, que se ocupa dela com carinho e ternura, e a mãe cinza, que a trata com indiferença, descaso e crueldade. Esta torna impossível a vida da filha, a quem culpabiliza pelas constantes doenças e dores que alega sofrer.
À medida que o tempo passa, a mãe vai se tornando cada vez mais cinza e menos rosa; cada vez mais voltada para suas doenças imaginárias e mais hostil em relação à filha. O pai, um tanto ausente, nada faz para mudar as coisas. O ambiente familiar é marcado por brigas constantes entre mãe e filha, marido e
mulher. A fim de exorcizar a maldade da mãe cinza e trazer de volta a rosa, Mila começa a praticar pequenos rituais, progressivamente mais complexos. Eles ocupam a maior parte do seu tempo, prejudicam seu desempenho na escola e o seu convívio com as demais crianças. Somam-se a isso vários problemas de saúde (apendicite, inapetência, perda de peso, atraso na puberdade), que, além de lhe render uma cirurgia e uma temporada em um centro marinho de helioterapia, agravam sobremaneira o seu estado emocional.
Esses males vão durar muito tempo. Entrando na adolescência,
os rituais obsessivos vão se multiplicando, fugindo totalmente ao controle. Não encontrando ninguém que a ampare (nem mesmo a ex-melhor amiga e a própria avó), Mila sente o chão se abrir sob seus pés. Ela procura manter a lucidez, mas é incapaz de reagir. Chega a tentar o suicídio, mas se arrepende a tempo. Redime-a, enfim, o apoio de uma psicoterapeuta que consegue impor um limite à tirania da mãe e a impede de participar das sessões. A narrativa termina nesse ponto: prevê-se que finalmente Mila encontrará o apoio de que necessita para libertar-se da opressão materna.

Tentando se defender sozinha
Em um cenário tão desalentador, pouco resta à vítima a não ser buscar defesas dentro de si. Sempre que alguém se sente ameaçado por pressões externas ou por sentimentos muito conflitantes, surge a angústia. Se essa angústia chega a um ponto insuportável, a pessoa lançará mão de mecanismos inconscientes de defesa para se preservar.
Uma das formas mais primitivas de defesa consiste no processo de dissociação (ou clivagem) dos "objetos de amor", bastante estudado pela psicanalista inglesa de origem austríaca, Melanie Klein (1882-1960).
Mila, por exemplo, lança mão da clivagem ao separar imaginariamente
sua mãe em duas: uma boa (rosa) e uma má (cinza). Esse foi seu jeito particular de suportar a angústia que as oscilações de humor da mãe lhe causavam.
Outra angústia, no entanto, foi tomando conta de Mila: a idéia de que sua mãe cinza poderia retornar a qualquer momento. Sempre que se sentia invadida por essa ameaça, a menina criava rituais bizarros, gestos, preces e fórmulas mágicas, repetidos de modo obsessivo para exorcizar todo tipo de mal. De acordo com o jargão médico, Mila apresentava sintomas de Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC).
As obsessões são idéias que invadem o sujeito, causando-lhe
grande ansiedade. As compulsões são ações inventadas pela pessoa para evitar ou controlar artificialmente essas idéias. O doente percebe a falta de lógica desse círculo vicioso, mas não tem forças para evitá-lo, o que compromete suas atividades cotidianas e se
converte em fonte de grande sofrimento. Alguns estudos apontam que o TOC costuma manifestar-se com a depressão, mas os psiquiatras ainda não sabem ao certo se é o TOC que causa depressão ou se ele é um sintoma atípico dela.

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